A sombra de um tarumã em um barranco do rio Paraguai foi o local escolhido para camuflar a armadilha. A câmera trap, de disparo automático, ficou uma semana presa ao tronco da árvore para tentar solucionar um mistério: quantas onças-pintadas visitavam aquele ponto remoto do Pantanal no Mato Grosso?
A expectativa dos técnicos do Instituto Chico Mendes de Conservação, o ICMBio, órgão responsável pela fiscalização das terras protegidas nacionais, aumentou quando recuperaram a câmera e constataram que havia disparos – sinal de que a armadilha funcionara. Mas a cena que apareceu no visor da máquina trouxe tristeza a todos. Não era nenhum felino selvagem, e sim um homem e uma mulher acendendo uma vela, ajoelhados ao lado de um pequeno cruzeiro de frente para o rio. O casal visitava o lugar no qual o filho, o pescador Luiz Alex da Silva Lara, havia sido morto por uma onça, em 2008.
A morte de Alex foi a quebra de um tabu. Nas lendas de índios e ribeirinhos das florestas e dos sertões brasileiros, são muitas as histórias de homens mortos pelo maior felino das Américas, mas todas sem nenhum registro oficial, o que tornava o ataque fatal da onça-pintada algo mais próximo de um mito. O único caso que se conhecia datava da década de 1980, quando um menino de 8 anos morreu na Vila dos Engenheiros, a residência dos técnicos de uma mineradora em Carajás, no Pará. Aquela, porém, foi uma investida de onça-parda. A falta de registros de ataques também levava os pescadores a crer que as onças avistadas jamais iriam importuná-los nos acampamentos.
Ao conduzir turistas, Douglas Trent (de boné preto) evita imprevistos: não chega a menos de 20 metros dos bichos e não deixa o barco parado por mais de 20 minutos
Alex foi surpreendido enquanto dormia em uma barraca. Ele acompanhava o pai, Alonso Silva, o mesmo senhor flagrado pela câmera trap e pescador profissional de iscas. No momento do ataque, o jovem estava sozinho. Há duas versões para a localização de Alonso: uma dá conta de que ele estava posicionado abaixo do barranco, limpando peixes às margens do rio, e outra de que ele estaria pescando iscas fora do acampamento e chegou de barco, em tempo de escutar um barulho e se deparar com um animal grande arrastando o filho. Daí em diante, o pai tentou, sem sucesso, espantar o bicho. Decidiu então pegar o barco e buscar socorro. Na lembrança de seu Alonso, eram duas onças. A perícia feita pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), ligado ao ICMBio, aponta que havia apenas um felino no local.
Foi o fim da coexistência pacífica entre as pessoas e as onças em Cáceres, no Mato Grosso, a 221 quilômetros de Cuiabá. Surgiram rumores de que alguém estaria matando os predadores. A carcaça de um animal sem cabeça, recolhida por fiscais meses depois, era uma das provas. As primeiras suspeitas recaíram logo no pai de Alex. “Ninguém pode acusar Alonso, pois muita gente ficou com medo. Pode ter sido qualquer um, até um dono de barco-hotel”, diz o pescador João Alves. “Passamos a ter mais cuidado, e mais medo, pois onça tem muita. Parei de dormir no barranco. Só no rio, dentro do barco.”
Localizada na vizinhança da fronteira com a Bolívia, Cáceres tem sua economia baseada na pecuária. No entanto, nos últimos anos, o turismo de pesca se tornou uma atividade rentável. A cidade chega a receber mais de 100 mil visitantes por ano, atraídos pela facilidade em fisgar peixes grandes, como pintado, dourado e pacu. Alex, o jovem morto pela onça, e seu pai, seu Alonso, trabalhavam como coletores de isca para abastecer os barcos de turistas.
Além dos peixes do rio Paraguai no Mato Grosso, os turistas são atraídos com a expectativa de avistar as onças. O hábitat da Panthera onca abrange quase todos os ambientes do Brasil. Sua população recuperou-se nos últimos anos
Um segundo incidente envolvendo uma onça-pintada, em junho de 2010, ocorreu a menos de 50 quilômetros do ponto em que Alex faleceu e tornou real um pesadelo para empresários e autoridades locais. A vítima foi um turista em um barco-hotel durante uma pescaria. O bicho pulou do barranco para o barco onde estavam os viajantes e derrubou no rio o estudante João Vitor Brás, de 16 anos. Internado em coma, o jovem, por sorte, sobreviveu. “Nasci de novo”, disse ele à imprensa na época.
As imagens das duas vítimas mostram a ferocidade e o estrago do bote desse felino. Em ambos os casos, os jovens tiveram a cabeça dilacerada e o corpo retalhado pelas garras dos animais. Maior carnívoro da fauna terrestre brasileira, a onça-pintada alimenta-se de 2 quilos de carne por dia quando em cativeiro. É um predador de topo de cadeia, ou seja, um caçador responsável por controlar a população de outros bichos, como capivaras e queixadas. E, diferentemente de seus parentes africanos e asiáticos, que matam suas vítimas por estrangulamento, o felino americano tem uma forma peculiar de aniquilar suas presas: com o poder de sua mandíbula, esmaga a base do crânio. “Em termos proporcionais, a mordida dela é mais forte que a do tigre e a do leão”, explica Peter Crawshaw, pesquisador do Cenap. A diferença entre os casos do pescador Alex e de João Vitor é que, no segundo, o turista teve a sorte de cair no rio. Ele sobreviveu porque a onça não conseguiu usar toda a força para mordê-lo. “Com isso, João Vitor sofreu ‘apenas’ um traumatismo craniano”, diz Crawshaw.
Diante dos dois incidentes, cientistas e ambientalistas começaram a buscar explicações. Por que naquela região estariam ocorrendo ataques de onças-pintadas? O primeiro obstáculo para compreender a situação – e assim salvar a vida de pessoas e animais – foi a total escassez de pesquisas sobre os felinos na área de Cáceres. Faltam estudos até mesmo na Estação Ecológica de Taiamã, criada, em 1981, nas ilhas fluviais de Taiamã e Sararé, uma localização estratégica para a pesquisa científica no rio Paraguai, um dos principais formadores da bacia pantaneira. As duas ilhas abrigam em seus 11,2 mil hectares pontos de grande concentração de biodiversidade.
Uma dúvida dos cientistas é se a agressividade desse animal é motivada por uma retomada da população em uma zona na qual ela estava desaparecida na década de 1980 ou pela invasão do território dos felinos em decorrência do aumento do turismo – ou por uma conjunção destes e de outros fatores. Algumas respostas podem vir dos trabalhos que Rogério Cunha de Paula, pesquisador e chefe substituto do Cenap, e Crawshaw estão realizando em Taiamã. Seu objetivo é fazer um estudo da ecologia das onças, o que inclui um levantamento populacional. “As análises são iniciais. Não podemos afirmar que existe superpopulação”, alerta Crawshaw.
Alguns indivíduos serão marcados com radiocolar para que seus hábitos sejam monitorados e seus territórios determinados. A técnica já está sendo usada em Taiamã e no Parque Nacional do Pantanal – uma região em que Crawshaw atua desde 1976, quando acompanhou o famoso naturalista americano George Schaller em sua passagem pelo Brasil. Curiosamente, ele esteve naquela porção pantaneira porque ali as onças corriam iminente risco de desaparecer.
Pesquisadores registram pegadas de onça na mesma área onde Alex da Silva foi morto, em 2008
Na década de 1970, uma das ameaças à espécie era a falta de vigilância na fronteira com a Bolívia, o que fazia da área uma porta de entrada de caçadores profissionais que abasteciam a indústria de peles. Na época, as onças viravam cobiçados casacos, vendidos por até 5 000 dólares em lojas finas de Buenos Aires, na Argentina.
O inglês Richard Mason, um ex-caçador de 70 anos que administra uma pousada na chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, testemunhou o tempo de abundância e de declínio de felinos naquela parte do Pantanal. Ele atuava na região a serviço de pecuaristas para matar as onças que estavam se alimentando de bezerros, em um período no qual a caça era permitida. “Até a década de 1960 tinha bastante onça. Cheguei a pegar animais com mais de 2 metros de comprimento e 100 quilos”, conta o inglês, referindo-se aos grandes predadores da região, que superam os padrões encontrados nas florestas da Amazônia. Para o ex-caçador, o problema do gado não era com as onças grandes, e sim com os chamados guaxos, jovens de pequeno porte que perdem a mãe cedo, não sabem caçar direito e se tornam devoradores de gado. “Eu apostaria que o animal que atacou o filho do pescador é um guaxo. Eles costumam ser os mais ferozes, pois passam muito tempo com fome.”
Apesar de orgulhar-se de seu passado, Mason se posiciona contra as caçadas ilegais no Brasil – como as comandadas pelas quadrilhas presas em dezembro de 2010 pela Polícia Federal, na Operação Jaguar. “É uma desonra para os caçadores profissionais. Esses grupos são formados por filhos ricos da elite, que não têm coragem de encarar o bicho e matá-lo com um tiro só. É terrível: eles chegam a dar até 20 tiros na mesma onça, e matam fêmeas prenhes e filhotes.” Antes defensor da liberação da caça no Brasil, nos moldes do que ocorre na África e nos Estados Unidos, Mason diz ter mudado de ideia diante da falta de conscientização e de fiscalização.
Uma das soluções sugeridas pelo ex-caçador é a regularização do turismo de observação dos animais em Cáceres – proposta também defendida pelo Cenap. Os estudos liderados hoje por Rogério Cunha visam buscar uma forma de coexistência pacífica entre as onças e os turistas que já visitam a localidade, ou seja, usar a favor dos animais o que há de mais especial em Taiamã: a chance de ver esses felinos com facilidade em uma das paisagens mais belas do Pantanal – uma região na qual os biomas da Amazônia e da planície pantaneira se misturam e o espelho d’água dá vida a um emaranhado formado por céu, rio, aguapés de flores roxas e vitórias-régias.
Diante do turismo crescente, a saída para minimizar os conflitos em Cáceres foi a criação de regras de observação das onças. As normas, elaboradas pelos técnicos do Cenap e distribuídas no ano passado, são dirigidas a todos os donos de barcos-hotéis, pescadores e pilotos de lanchas da cidade. “Alguns guias e barqueiros locais passaram a cevar os bichos para garantir que o turista irá vê-los”, acusa o biólogo Rogério Cunha, do Cenap. A prática da ceva consiste em jogar peixes ou deixar carcaça de animais para que os felinos se aproximem dos barcos. “É algo muito perigoso, pois faz com que associem o homem à comida.” Cunha relembra que aproximar-se desse animal sem cuidados é pedir para que algo de ruim aconteça. O combate à ceva virou prioridade para os órgãos ambientais.
Após o ataque de uma onça, João Alves cercou seu acampamento com fios elétricos ligados a um gerador
O alimento fornecido pelos seres humanos talvez sirva como parte da explicação dos dois ataques. “No primeiro caso, é possível que tenha ocorrido uma ceva não intencional, pois a onça poderia ter sido atraída por restos de iscas que estavam na beira do rio”, conta Ronaldo Morato, diretor do Cenap e outro mentor do projeto para o ordenamento do turismo de observação de felinos. No segundo, os guias de pesca aproximaram demais o barco ao barranco, justamente em um dos pontos em que a equipe do Cenap já havia localizado várias cevas. “Não dá para afirmar que essa foi a motivação, mas é a nossa tese principal.”
A facilidade com que se avista uma onça-pintada nos arredores da estação ecológica é surpreendente. Em três dias de barco em Taiamã, ficamos de cara com três indivíduos da espécie, um número elevado, pois, ao contrário do leão e do guepardo, acostumados com carros de turistas em países africanos, a onça é desconfiada. É conhecida por ser um animal de “emboscada” e que evita o contato com os seres humanos. Em menos de quatro horas de viagem de barco, topamos com a primeira onça da expedição, que estava cruzando a nado o rio Paraguai.
Paramos a embarcação e ouvimos o esturro do animal, o grito rouco e similar ao ronco de um motor. No dia seguinte, uma segunda onça possibilita um contato maior. Deitada em um tronco de árvore, ela dorme. Mal se incomoda com a nossa presença, a uns 10 metros dela. Depois de muita relutância, levanta-se devagar, sem nenhum tipo de reação agressiva, e arrasta o corpo pesado por uns 5 metros até a sombra de uma figueira para então se largar na areia fofa. “Não é normal uma onça agir dessa forma. Na Estação Ecológica Taiamã, elas parecem não se importar com a presença humana”, diz Morato.
Os vigias da estação são os que convivem com maior proximidade. Eles permanecem isolados na pequena casa de alvenaria por até três semanas. “Já ficamos presos por horas na casa do gerador, esperando que uma onça que dormia no meio da trilha resolvesse partir”, conta Maria Sebastiana de Moraes. Ela e o marido, Gustavo Cezar Ferregin, trabalham em Taiamã há um ano. Quando aceitaram o emprego, já tinham ouvido falar dos predadores. “Minha mãe dizia que iríamos morrer devorados. Mas eu não tenho medo. Sei que, se seguirmos as indicações dos cientistas, não vamos correr perigo”, diz Maria.
Muitos concordam e acham que é possível a coexistência com os predadores em Cáceres. E que isso pode trazer benefícios para as pessoas. “Acredito que as onças agem de forma diferente aqui porque sabem que não são incomodadas”, diz Douglas Trent, um americano especialista em ecoturismo e que atua no Pantanal há três décadas. Trent leva grupos para viajar nos arredores de Taiamã. O foco de suas expedições é a observação dos felinos. Ele foi o primeiro a perceber o potencial do local para essa prática e tem um acervo de mais de 3 mil fotos de 42 onças. “Basta respeitar as regras mínimas e ter consciência de que, apesar de belo, trata-se de um animal selvagem e territorial.”
Em suas expedições, Trent não permite que ninguém fale nem se aproxime a menos de 20 metros dos animais. Quem quiser obter closes precisa estar equipado com teleobjetivas. Também é preciso ser rápido, já que o barco não permanece parado por mais de 20 minutos.
No início de 2011, um decreto regularizou o turismo de observação de onças no Mato Grosso. As regras foram definidas com o apoio técnico do Cenap e dos órgãos ambientais e de turismo do estado. “Agora caminhamos para uma relação pacífica entre os felinos e as pessoas em todo o Pantanal”, diz Ronaldo Morato.